A tinta transpira a voz dele a ecoar no corredor quando clamava ajuda durante a noite. O barulho do arrastar dos pés de quem se levantava, noite após noite, para o acudir.
Aqui deitada, passados 13 anos, ainda me lembro dele deitado na cama de hospital a pedir clemência com os olhos. Que lhe tirassem as dores e o deixassem partir.
Hoje, ao passar no mesmo corredor de há 13 anos repleto de pessoas perdidas em si mesmas, ela diz-me:
- Foi aqui que ele acabou…
Eu sei. Já sabia. Estava lá. Mas ela não se lembra. Esquece tudo num ápice, repetindo incessantemente as histórias e perguntas com a mesma vontade e curiosidade de quem ainda não obteve resposta.
Engoli em seco e acedi com a cabeça. Custa-me falar dos últimos anos. Prefiro quando me conta pela centésima vez como se conheceram no eléctrico e passados 5 meses estavam casados. A centelha de orgulho nos olhos humedecidos quando relata que ele dizia que se voltasse atrás casaria com ela, sempre!
O orgulho de ter amado e sido amada como poucos foram!
Pejada de memórias num corrupio na minha cabeça cansada, arrasto-me silenciosamente, durante a noite, pela casa. Onde vivemos deixamos sempre parte de nós. De quem fomos quando habitamos aquele espaço. E ele deixou as suas “migalhas” que causam melancolia e saudade…
As barras no corredor que dá para a cozinha. Mandaram por quando ainda havia a esperança que voltasse a andar. Nunca o consegui embora tenha tentado com as poucas forças que lhe restavam…
Amava-o! Muito! Admirava-o como a ninguém! E, desde que nos deixou, ficou parte de mim por preencher.
No entanto, no fim da sua vida desejei-lhe a morte. Com todas as minhas forças pedia mentalmente que desistisse duma vez e acabasse com o sofrimento e tivesse, finalmente, algum sossego.
Merecia melhor do que a morte que teve. Para alguém que viveu uma vida tão válida, o pior castigo foi ter ficado inválido!