terça-feira, setembro 30, 2008

ESCREVA-SE O FUTURO EM MAIÚSCULA

que os dias e instantes que aí vêm o merecem e são coisa de todos nós. O presente, esse não existe e mais não é que um artefacto da contemplação do passado.

No meu tempo é que era, dizem os incautos, iludidos que vivem na memória de uma idade que foi, esquecidos que são de viver amanhã, esse instante que se constrói em cada pequeno gesto do quotidiano.

Há dias, cidade fora, passeava-se uma anciã de cabelos de prata, curva dos anos, chita florida a cobrir-lhe o tronco, resplandecente de passado com saia vermelha tingida a sangue, achinelados os pés a pisar uma terra que ainda é sua. Pela mão passeava um daqueles desusados carrinhos de compras prenhe de objectos mil, inúteis e entesourados. Entoava uma ladainha onde se confundiam preces a um deus e humanas imprecações, impiedosa e brutal no seu dizer da zanga contra os demais, justa apreciação que da sua alma fizeram lama. Caminhava e caminhava e caminhava para lugar nenhum, rodopio próprio de quem teme que a inacção antecipe a morte. Fiquei para ali um tempo, desatento das costumadas conversas, deslumbrado por aquela Harpia que visitava a cidade em busca de uma alma que lhe devolvesse essoutra sua há muito perdida.

Em volta havia jovens, muitos, a gozar o sol e a vida como lhes é devido, ruidosos numa felicidade costumeira e que dava ainda mais brilho ao dia. Senti-me ponte e passagem, passado e futuro, ser e transformação, que amanhã não deveria ser mais possível haver gente perdida assim da vida e de si. Senti-me confiante, também, que tenho para mim haver entre as mulheres e homens de amanhã gente capaz do discernimento de recusar a herança de uma sociedade que lhes deixamos, honesta no desejo de uma civilização melhor, mais justa e solidária. Porque quero crer que os jovens de hoje são gente maiúscula e muitas são as vezes em que me surpreendem pelo entendimento do que os rodeia, críticos e intempestivos, com soluções utópicas que os fazem sonhar mas que transformam cada pequeno gesto na saga de um futuro que lhes pertence por direito próprio.


João Lázaro
Psicólogo Clínico Director Artístico do TE-ATO

5 comentários:

ematejoca disse...

"Porque quero crer que os jovens de hoje são gente maiúscula e muitas são as vezes em que me surpreendem pelo entendimento do que os rodeia, críticos e intempestivos, com soluções utópicas que os fazem sonhar mas que transformam cada pequeno gesto na saga de um futuro que lhes pertence por direito próprio."
Que palavras bem ditas.
Estou farta de ouvir que a Juventude de agora nao vale nada "no nosso tempo é que tudo era bom". Eu nao acho que a Juventude de hoje seja melhor ou pior do que a de outros tempos. É diferente. A única coisa que me aborrece na Juventude de hoje é eu nao fazer parte dela.

Continue a escrever aqui. Aprecio muito os seus textos.

Anónimo disse...

Olá querida venho só dizer que tenho andado sem net...dai a minha ausência. Beijinhos MIL =)

1/4 de Fada disse...

Magnífico texto. Já é o 2º que leio da mesma pessoa e de que gosto imenso. Tens sorte, Renard.

nOgS disse...

["Caminhava e caminhava e caminhava para lugar nenhum, rodopio próprio de quem teme que a inacção antecipe a morte. Fiquei para ali um tempo, desatento das costumadas conversas, deslumbrado por aquela Harpia que visitava a cidade em busca de uma alma que lhe devolvesse essoutra sua há muito perdida."]

Que texto magnífico, Renard!

Beijo

BC disse...

Texto perfeito,adorei.
Na realidade subscrevo as palavras
da Teresinha.
Acho que a juventude de hoje não é melhor nem pior que as gerações passadas, são simplesmente diferentes.
TALVEZ MAIS FRANCOS, MENOS HIPÓCRITAS.
Os tempos mudam, mudam-se as vontades.
Continue e tu renard também.
Beijocas BC