Depois de tudo dito e feito encontra-se, novamente, onde começou. Sozinha tenta reconstruir-se encaixando o que as novas experiências do último ano lhe ensinaram.
Passeando sem rumo questiona-se se valeu a pena…
Escurece. As luzes à beira rio vão acendendo sucessivamente. Senta-se. Aquece as mãos esfregando-as uma contra a outra. Olha em redor. Para além dos carros que circulam não existem muitas pessoas a deambular pela rua. Está frio. O tempo convida a fazer trajectos dentro do carro com o ar condicionado ligado.
Contempla a condensação provocada pela sua respiração e decide acender um cigarro. Lentamente (as mãos estão dormentes do frio) retira o maço de Marlboro da mala e o isqueiro Bic preto que tem usado. Comprou-o no café onde vai há anos. Onde todos a conhecem por nome e que agora, por força da lei, a remetem para a esplanada em pleno Inverno para que possa desfrutar deste seu vício antigo. Enfim, mudou-se o tempo, manteve-se a vontade…
Leva o cigarro aos lábios. Humedece-os antecipadamente para que o filtro não lhe arranque um pedaço de pele. Acende-o, inspira e trava. Expele o fumo num suspiro…
A questão da pertinência dos conhecimentos empíricos recém adquiridos voltou pedindo resolução. Deverá fechar esse capítulo da sua vida, arrumá-lo e deixar apenas as elações que tirou? Ou, seria melhor, esperar mais um pouco e ver no que dá?
Pondera. Pesa os prós e contras de cada solução. Bloqueio mental. Ambas trazem sofrimento… Mas qual o mal menor?
Lembra-se de alguns, entre milhares, de episódios da sua vida onde se encontrava neste imbróglio. Com a decisão pedindo urgência e a sua relutância em desapegar de memórias… Ao longo da vida adulta, de forma constante, tinha tido o mau hábito de deixar o sentimentalismo sobrepor-se à lógica. Gosta das pessoas e, olha, daí à cisão são muitas noites mal dormidas.
Decide levantar-se. Andar mais um pouco. Apaga o cigarro atirando-o para o chão e pisando-o vigorosamente. Apanha a beata e coloca-a num maço vazio que tem para o efeito. Coloca o maço e isqueiro na mala. Mantém o maço vazio na mão para o colocar num caixote do lixo pelo caminho. A mala é colocada a tiracolo, levanta-se do banco resmungando perante as dores provenientes das pernas entorpecidas pelo frio e inércia daqueles minutos. Fica ali uns segundos a sacudir e massajar as pernas chamando, entre dentes, nomes pouco próprios à doença que aos poucos se vai revelando cada vez mais complicada.
Suspira com resignação. Começa o caminho para casa. Não que lhe apetece voltar para aquele silêncio mas não tem para onde ir.
Desta feita, irá pela interior da cidade. Demorará mais tempo e pode ser que encontre alguém que conhece… Desce as escadas junto do Teatro e começa a fazer a Avenida dirigindo-se para o Jardim. Já é noite. Agora não se vê mesmo vivalma. Contempla as montras iluminadas e as luzes de natal que agora jazem apagadas no chão à espera de serem recolhidas pelas carrinhas da Câmara. Até a Sra. das castanhas já arrumou a trouxa e foi para casa. Pára subitamente defronte do Jardim. Não lhe parece inteligente passar ali sem ninguém por perto… Ainda se lembra dos tempos em que se podia ser destemida nesta cidade. Resolve atravessar e passar pela Praça que tem sempre gente nem que seja nos cafés. Os fumadores, claro, estarão nas esplanadas ao frio. Já que pensa nisso… Saca de mais um cigarro da mala. Acende e vai fumando enquanto faz o caminho até a Praça. As suas suspeitas confirmam-se. Há gente ali. Ouve-se o burburinho das conversas e as ocasionais gargalhadas vindas de mesas à distância. Olha para as mesas da esplanada em frente e apetece-lhe um café. Senta-se e prontamente chega o jovem empregado para apontar o pedido. Ouve, aponta e apressa-se a ir buscar a bica. O cigarro chegou ao fim. Apaga-o no chão e junta esta nova beata à outra no maço feito cinzeiro.
Distrai-se a olhar para crianças a correr e a brincar no centro da praça. Os cães abandonados aglomerados debaixo dum banco procurando manterem-se quentes. Sente pena dos animais. Como se pode tratar assim seres tão meigos e fiéis? Seres que não se podem proteger a si próprios? Tratá-los como restos que a sociedade não quer? Se tivesse muito dinheiro todos estes animais teriam casa e comida. Não têm de pagar pelos nossos erros, pensou ela.
Chegou o seu café. Paga logo para poder levantar-se e ir embora descansada quando lhe apetecer. Odeia tomar café sozinha. Gosta mais do hábito social de, para se estar com um amigo na conversa, se convidar para um cafézito.
Sacode o pacote de açúcar e rasga o canto. Entorna-o todo para dentro da chávena. Sempre o bebeu com o açúcar todo. O sabor amargo do café nunca lhe agradou. Distraidamente vai mexendo o café enquanto a questão que a aborrece há dias volta a surgir-lhe nos pensamentos. Levanta os olhos para uma transversal da Praça. Aquela transversal. Suspira, abana a cabeça e volta a olhar para a chávena… Leva-a à boca e bebe o café dum trago. Subitamente quer sair dali. Levanta-se, acende um cigarro, põe a mala a tiracolo e pega no “maço-cinzeiro.”
Começa a sair da Praça e a subir a rua íngreme que a levará até casa. Deita fora o maço com as beatas e apressa-se. Sente-se cansada e dói-lhe a cabeça… Irá deitar-se no sofá a descansar assim que chegar.
Dobra a esquina e perto do jardim que fica em frente ao Tribunal desata a correr. Quer fugir. Das pressões a que está sujeita. Das vozes que a aconselham e que começam a subir de tom. Da dor que a enlouquece. Quer gritar mas não pode. Junto ao Tribunal pára, põe as mãos nos joelhos e tenta recuperar o fôlego. O fundo da garganta arde-lhe devido a ter corrido com o frio e começa a tossir. Sorri e volta a andar a passo largo em direcção a casa.
Sorri porque aquela corrida foi despropositada. Infantil. Psicótica. Louca. Mas divertida.
Sorri porque tem a resposta à questão que lhe tira o sono há dias….
Passeando sem rumo questiona-se se valeu a pena…
Escurece. As luzes à beira rio vão acendendo sucessivamente. Senta-se. Aquece as mãos esfregando-as uma contra a outra. Olha em redor. Para além dos carros que circulam não existem muitas pessoas a deambular pela rua. Está frio. O tempo convida a fazer trajectos dentro do carro com o ar condicionado ligado.
Contempla a condensação provocada pela sua respiração e decide acender um cigarro. Lentamente (as mãos estão dormentes do frio) retira o maço de Marlboro da mala e o isqueiro Bic preto que tem usado. Comprou-o no café onde vai há anos. Onde todos a conhecem por nome e que agora, por força da lei, a remetem para a esplanada em pleno Inverno para que possa desfrutar deste seu vício antigo. Enfim, mudou-se o tempo, manteve-se a vontade…
Leva o cigarro aos lábios. Humedece-os antecipadamente para que o filtro não lhe arranque um pedaço de pele. Acende-o, inspira e trava. Expele o fumo num suspiro…
A questão da pertinência dos conhecimentos empíricos recém adquiridos voltou pedindo resolução. Deverá fechar esse capítulo da sua vida, arrumá-lo e deixar apenas as elações que tirou? Ou, seria melhor, esperar mais um pouco e ver no que dá?
Pondera. Pesa os prós e contras de cada solução. Bloqueio mental. Ambas trazem sofrimento… Mas qual o mal menor?
Lembra-se de alguns, entre milhares, de episódios da sua vida onde se encontrava neste imbróglio. Com a decisão pedindo urgência e a sua relutância em desapegar de memórias… Ao longo da vida adulta, de forma constante, tinha tido o mau hábito de deixar o sentimentalismo sobrepor-se à lógica. Gosta das pessoas e, olha, daí à cisão são muitas noites mal dormidas.
Decide levantar-se. Andar mais um pouco. Apaga o cigarro atirando-o para o chão e pisando-o vigorosamente. Apanha a beata e coloca-a num maço vazio que tem para o efeito. Coloca o maço e isqueiro na mala. Mantém o maço vazio na mão para o colocar num caixote do lixo pelo caminho. A mala é colocada a tiracolo, levanta-se do banco resmungando perante as dores provenientes das pernas entorpecidas pelo frio e inércia daqueles minutos. Fica ali uns segundos a sacudir e massajar as pernas chamando, entre dentes, nomes pouco próprios à doença que aos poucos se vai revelando cada vez mais complicada.
Suspira com resignação. Começa o caminho para casa. Não que lhe apetece voltar para aquele silêncio mas não tem para onde ir.
Desta feita, irá pela interior da cidade. Demorará mais tempo e pode ser que encontre alguém que conhece… Desce as escadas junto do Teatro e começa a fazer a Avenida dirigindo-se para o Jardim. Já é noite. Agora não se vê mesmo vivalma. Contempla as montras iluminadas e as luzes de natal que agora jazem apagadas no chão à espera de serem recolhidas pelas carrinhas da Câmara. Até a Sra. das castanhas já arrumou a trouxa e foi para casa. Pára subitamente defronte do Jardim. Não lhe parece inteligente passar ali sem ninguém por perto… Ainda se lembra dos tempos em que se podia ser destemida nesta cidade. Resolve atravessar e passar pela Praça que tem sempre gente nem que seja nos cafés. Os fumadores, claro, estarão nas esplanadas ao frio. Já que pensa nisso… Saca de mais um cigarro da mala. Acende e vai fumando enquanto faz o caminho até a Praça. As suas suspeitas confirmam-se. Há gente ali. Ouve-se o burburinho das conversas e as ocasionais gargalhadas vindas de mesas à distância. Olha para as mesas da esplanada em frente e apetece-lhe um café. Senta-se e prontamente chega o jovem empregado para apontar o pedido. Ouve, aponta e apressa-se a ir buscar a bica. O cigarro chegou ao fim. Apaga-o no chão e junta esta nova beata à outra no maço feito cinzeiro.
Distrai-se a olhar para crianças a correr e a brincar no centro da praça. Os cães abandonados aglomerados debaixo dum banco procurando manterem-se quentes. Sente pena dos animais. Como se pode tratar assim seres tão meigos e fiéis? Seres que não se podem proteger a si próprios? Tratá-los como restos que a sociedade não quer? Se tivesse muito dinheiro todos estes animais teriam casa e comida. Não têm de pagar pelos nossos erros, pensou ela.
Chegou o seu café. Paga logo para poder levantar-se e ir embora descansada quando lhe apetecer. Odeia tomar café sozinha. Gosta mais do hábito social de, para se estar com um amigo na conversa, se convidar para um cafézito.
Sacode o pacote de açúcar e rasga o canto. Entorna-o todo para dentro da chávena. Sempre o bebeu com o açúcar todo. O sabor amargo do café nunca lhe agradou. Distraidamente vai mexendo o café enquanto a questão que a aborrece há dias volta a surgir-lhe nos pensamentos. Levanta os olhos para uma transversal da Praça. Aquela transversal. Suspira, abana a cabeça e volta a olhar para a chávena… Leva-a à boca e bebe o café dum trago. Subitamente quer sair dali. Levanta-se, acende um cigarro, põe a mala a tiracolo e pega no “maço-cinzeiro.”
Começa a sair da Praça e a subir a rua íngreme que a levará até casa. Deita fora o maço com as beatas e apressa-se. Sente-se cansada e dói-lhe a cabeça… Irá deitar-se no sofá a descansar assim que chegar.
Dobra a esquina e perto do jardim que fica em frente ao Tribunal desata a correr. Quer fugir. Das pressões a que está sujeita. Das vozes que a aconselham e que começam a subir de tom. Da dor que a enlouquece. Quer gritar mas não pode. Junto ao Tribunal pára, põe as mãos nos joelhos e tenta recuperar o fôlego. O fundo da garganta arde-lhe devido a ter corrido com o frio e começa a tossir. Sorri e volta a andar a passo largo em direcção a casa.
Sorri porque aquela corrida foi despropositada. Infantil. Psicótica. Louca. Mas divertida.
Sorri porque tem a resposta à questão que lhe tira o sono há dias….
1 comentário:
Eu gosto do café sem açúcar... Estou convencido que só é amargo para quem o toma com açúcar. Na realidade, o café é bem doce, apesar da sua acidez intensa. A utilidade é, no mínimo, dupla: distinguir o que sentimos genuinamente acerca de determinada experiência (amargo é diferente de ácido) e perceber que, por vezes, o condicionamento pela forma faz-nos perder o conteúdo (o café torna-se amargo, mesmo que seja doce).
Gosto do café sem açúcar, frio ou quente, cheio ou curto, expresso ou de borra, principalmente tomado com companhia, porque isso, sim, tem capacidade de adocicar ou amargar o âmbito de tal ritual. Tal como o café, gosto que a companhia seja coerente: se é uma companhia ácida, não quero que seja doce; se é uma companhia doce, não quero que seja ácida! Nada como poder usufruir de uma boa acidez ou de um bom docinho! Detesto a companhia mesquinha dos sedutores, seres psicopáticos que se relacionam com aquilo que acham que são ou que alguém gostaria que fossem... prefiro, a léguas, a companhia de uma pessoa bem amarga, como o café não é! Aliás, a amargura, como várias emoções da parafernália humana, são bastante mais interessantes do que qualquer tipo de "prótese". Tal como na degustação do café, parece-me que é extremamente compensador perceber as diversas gradações que as emoções têm, e a implicação que a experiência tem na sua experimentação, à medida que se expandem no ar pequenas nuvens de fumo quente. Quando o café me sabe mal, algo se passa. Conheço demasiado bem o meu café: de certeza que, a passar-se algo, é comigo... por vezes a digestão complica-se e o café cai que nem um espinho. De facto, tomar café exige respeito pelo mesmo. Sim, tal como o contacto relacional, é importante perceber se estamos preparados para ele. Às vezes (não muitas) é tão pesado, que nos ultrapassa, fazendo-se sentir em acessos mais ou menos violentos de rejeição. Nestas situações, como gosto do café sem açúcar, tal como ele é, rejeito-o, porque é isso que sinto e é isso que ele pede. Acho que ia ficar triste se não o fizesse, por mim e por ele... é a tal azia à falta de coerência! Não é que ficar triste seja o fim do mundo, não! Sou suficientemente curioso para gostar de me banhar em tristeza de quando em vez... sem exageros, porque gera mau hábito e pode criar perturbações no tracto intestinal! A ideia, tal como no café sem açúcar, é desfrutar porque é o esperado!
Ontem mesmo, tomava o meu café, que tanto gosto, em chávena grande (como a minha disponibilidade para pensar e usufruir dele) e reflectia nisso mesmo: será que as pessoas que tomam o café com açúcar alguma vez vão poder sentir o verdadeiro sabor adocicado do café sem açúcar??? Não é que isso me transtorne (até porque gosto de alguns transtornos pontuais, acho que tonifica a nossa disposição para mudanças), mas acho que as coisas realmente importantes necessitam mesmo de uma reflexão existencial intensa e profunda, a começar, precisamente, pela nossa posição relativamente às mesmas, que permitam perceber as coisas à nossa medida e ao nosso ritmo!
Assim o creio!
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